Por Blonsom Faria

Desde as molhadiças troças do entrudo, onde a população negra escravizada se vestia com sapatos e casacas de nobres, espalhando-se por toda a cidade colonial, o carnaval tem como uma de suas principais marcas abordar de forma jocosa, mas crítica, as mazelas sociais. O carnaval de 2018 mostrou-nos que, no Reinado de Momo, a brincadeira continua a falar de coisa séria, e o mais triste, que pouca coisa mudou.

Elites endinheiradas, Estado pusilânime, classe média medíocre, pautada na política dos privilégios, somadas a flagrantes forças internacionais tensionando as cordas que teimam em amarrar ao povo brasileiro, para perpetuá-lo como marionetes nas cenas do espetáculo do atraso, são elementos constantes da crítica e do deboche carnavalesco, que inspiram criativas formas de protesto e questionamento social.

O carnaval que conhecemos hoje passou por diversas transformações; e suas escolas de samba, inicialmente associações populares ligadas às populações pobres, em grande maioria negra e moradora dos morros cariocas, vão se diferenciando dos blocos de sujo, tanto pelas suas potencialidades estéticas, que vão gerar os desfiles espetáculo, quanto pela sua capacidade de organização, atendendo então aos esforços de coerção e controle, tão caros aos poderes instituídos.

O brincar do folião, que era livre, espontâneo em sua manifestação, passa a ter etiqueta; e as escolas de samba, contraem paulatinamente o papel de ensinar aos sambistas os ditames de um divertimento cordato, onde sua apresentação passa a atender aos critérios dos concursos. A criação das Associações das Escolas de Samba, que culminam nas atuais LIESA e LIERJ, acentuam esse caráter civilizador, onde o divertimento do folião passa a ser enquadrado a uma série de quesitos a serem julgado.

A festa popular, que ecoava por toda a cidade, passa a ter um palco definido. Após deslocar-se por várias avenidas, a organização dos desfiles era um grande desafio, até a construção do Sambódromo, que desde sua inauguração, vem sendo a passarela do samba.

No bojo do processo de enquadramento, a implementação do panóptico se fazia cada vez mais necessária para canalizar o carnaval numa passarela, que deveria ser merecida à custas de um grande esforço de profissionalização. Os desfiles passam a ser um importante commodity cultural, tornando-se um dos principais produtos turísticos da cidade do Rio de Janeiro.  Destaca-se a percepção do potencial comercial da grande ópera a céu aberto pelos veículos de comunicação, que passam a efetuar a sua cobertura, o que culminará num oligopólio que também dita regras ao evento.

Esse brevíssimo vôo de pássaro sobre as transformações dos festejos carnavalescos mostra-nos que o carnaval é uma festa de subversão, inversão e crítica social.  O maior espetáculo da Terra configura-se num palco de intensas disputas e grande dinâmica, onde as regras do jogo se refazem a todo tempo, criando e ressignificando o próprio conceito de Escola de Samba.

Ratos gigantes, vampiros sugadores do dinheiro público, prefeito malhado como Judas, cenas da corrupção e da pobreza, foram os destaques dos desfiles das escolas de samba do grupo especial neste carnaval.  No entanto, o reflexo dos infortúnios da sociedade nas festas populares, sobretudos às momescas, não se trata de nenhuma novidade. E, justamente por seu caráter crítico, o carnaval tem sido caracterizado pelo período de suspensão de algumas regras e a ignorância de algumas proibições, gerando certames de interesse público, regados é claro, de muita alegria e descontração.

É tradicional ao carnaval de rua apresentar fantasias que expressam essa atitude questionadora e, muita das vezes, contestadora. Mas, a manifestações das insatisfações populares nos desfiles das escolas de samba ainda estão cingidas pela etiqueta a que me referi, formalidades protocolares assumidas pelas agremiações, a fim de se adequarem aos modelos do carnaval espetáculo.

Eis que surge a crise, e no seu processo de construção e reverberação social, os indivíduos vêem nascer de suas agruras o questionamento das causas e dos culpados pela instabilidade econômica e social. Surge um processo dialético, que ganha as ruas em fantasias, performances e expressões artísticas.

Mas, e os desfiles deste ano? O que eles apresentaram e apontam? Em resumida análise socioantropológica, destaco os pontos que contribuirão para a construção de novos caminhos estéticos e discursivos. Cabe esclarecer que não apresento juízo de valor, tampouco ratifico ou contesto os resultados da apuração.

Mediante o horizonte que se definiu com as notas dos jurados, assim como a reverberação na imprensa e nas ruas, o tom político dos desfiles, assim como a popularidade dos sambas-enredo, definiram a disputa.

Embora a Beija-Flor de Nilópolis tenha sido a campeã do carnaval 2018, a grande surpresa ficou a cargo da Paraíso do Tuiuti, que veio de um carnaval marcado por  acidentes e tristes lembranças, mas,  sagrou-se como vice-campeã das grandes escolas.

Com um excelente samba-enredo, que rapidamente caiu na boca do povo, a Tuiuti apresentou um desfile pautado num argumento muito bem construído, onde a escravidão e a liberdade fora muito bem apresentadas por fantasias e alegorias. Mas o brilhantismo do carnavalesco ficou ainda mais evidente no setor final da escola, onde o passado escravista foi contextualizado com a situação política atual e fez ecoar pela avenida, e posteriormente para todo o Brasil, a pergunta que dava título ao enredo: Meu Deus, meus Deus, está extinta a escravidão?

A comissão de frente abriu o desfile emocionando o público, o carro abre-alas, as alas e alegorias não traziam nada de novo, no sentido que a escravidão e a liberdade dos negros no Brasil já foram abordados em outros carnavais, no entanto, no desfecho da escola a catarse de ver com toda a clareza, aquilo que se chamou de cativeiro social, fez com que o público que já estava empolgado com o samba e a beleza da escola a aclamarem a agremiação como uma das favoritas do carnaval.

O tom polêmico e a seriedade na abordagem de um assunto tão delicado da nossa história garantiu a simpatia do público e da crítica, que a aclamou como a campeã moral do carnaval. De fato, abordar o negro de uma forma para além das senzalas, contextualizar a escravidão com as relações de trabalho atuais e apresentar a narrativa cênica clara foi um dos pontos altos da Tuiuti.

A última alegoria, onde o destaque fantasiado de vampiro do neoliberalismo foi identificado prontamente à figura do presidente da república, provocou identificação do público e tornou-se um dos assuntos mais comentados da Internet.

Certamente a crítica social acertada não foi o único motivo para sua excelente colocação, pois a agremiação apresentou um grande esmero estético, assim como as co-irmãs, mas os olhares dos jurados certamente foram ampliados pela temática do desfile e sua coragem, presentes em todo o desenvolvimento da narrativa plástico-formal.

A coragem também esteve presente no desfile da Mangueira. Com um enredo muito bem construído e magistralmente desenvolvido na avenida, a Estação Primeira, que apresentou como elemento discursivo os antigos carnavais, as dificuldades financeiras e o brincar carnaval, terminou sua passagem pela Sapucaí com críticas diretas ao prefeito da cidade, que foi representado por um boneco da malhação de Judas, inclusive com um retrato de seu rosto.

Uma das alegorias trazia a inscrição: “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”.  Havia ainda uma placa nas mãos do boneco, com a inscrição “Pega no ganzá”, em referência ao samba cantado pelo então candidato à prefeitura na Liga das Escolas de Samba, quando fora pedir votos em sua campanha eleitoral.

O corte pela metade nas subvenções da prefeitura e as dificuldades de se colocar o carnaval na avenida, foram certamente a motivação do carnavalesco Leandro Vieira, que concebeu uma das melhores propostas de enredo do ano, firmando seu nome, assim como Jack Vasconcelos, como os novos talentos do carnaval carioca.

Por falar em talento, a consagrada Rosa Magalhães também deu um tom político ao desfile da Portela, que abordando os judeus que passaram pelo nordeste brasileiro e posteriormente fundaram Nova York, trouxe na conclusão do desfile a temática dos imigrantes e refugiados, um dos temas humanitários de repercussão internacional.

Já a Acadêmicos do Salgueiro, que também apresentou um desfile empolgante e esteticamente impecável, apresentou a mulher como temática. Embora tenha agradado muito ao público, recebeu muitas críticas quanto a utilização da blackfaces por parte de componentes da comissão de frente e da bateria.

 A campeã do carnaval trouxe à passarela do samba um desfile com nova expressão plástica, menos luxuosa, e com recursos cênicos que, teatralizando cenas do cotidiano, remeteu-se à linguagem jornalística. A corrupção foi um forte conceito trabalhado, apontando como sua conseqüência a manutenção da pobreza e da criminalidade.

O enredo teve o desafio de partir do famoso livro de Mary Shelley sobre o Dr. Victor Frankenstein e sua criatura, e chegar aos “filhos abandonados da Pátria que os pariu”. A narrativa visual foi desenvolvida numa linguagem naturalista, que no setor final lembrava muito o antológico desfile de 1989, Ratos e urubus, larguem minha fantasia, de Joãozinho Trinta.

O entendimento da homenagem aos 200 anos do clássico da literatura universal ficou menor que o sentimento catársico de ver representado na avenida toda a roubalheira, politicagem e vilipêndio ao povo brasileiro.

Assunto sérios, cotidianamente apresentados nos telejornais, como mortes, crise da saúde e educação, balas perdidas, escândalos no alto escalão político, estavam presentes nas alegorias chamando a atenção dos brincantes e do público para a grande barafunda a que se transformou a política nacional: corrupta, injusta, calcada nos esquemas e maracutaias, além da covarde exploração e produção de miséria.

O presente texto, por uma questão de delimitação, apresenta apenas alguns aspectos dos desfiles, e não esgota nenhuma análise, pelo contrário, objetiva levantar questionamentos.

O carnaval, não podemos esquecer, é pautado em muitos interesses e disputas, mas é importante ressaltar que ele também nos pauta, trazendo à tona nossas peculiaridades, e refletindo a realidade social.

Quanto às novidades e renovações da linguagem plástico-formal dos desfiles, cabe um novo texto, mas, sem dúvida as escolas de samba estão reinventando e inovando nas formas de expressão. Desfiles mais leves, com menos luxo, teatralizados e com uso da tecnologia vão sendo cada vez mais freqüentes, e como disse no início do texto, sem juízo de valores, o carnaval vai apresentando novos critérios em sua forma, e a crise financeira intensificou esse processo, assim como novos paradigmas em seu conteúdo.

Quais serão os caminhos dos desfiles? Narrativas politizadas, contextualizadas e significativas? Continuará cabendo enredos onde saber como Luis XIV penteava a peruca é o tema central? Haverá retorno do carnaval nababesco, com muitas alegorias apinhadas de fantasias emplumadas? Triunfará a linguagem hi-tech da interatividade? A beleza do efeito visual do espetáculo contará mais que a mensagem veiculada?

Como saber? Saudades mesmo eu tenho é do carnaval em que a melhor fantasia era a alegria!

Blonsom Faria é Antropólogo e historiador, pesquisador de história, cultura e religiosidade africana e afro-brasileira.