É admirável a capacidade de organização e resistência da população pobre, preta e marginalizada do Rio de Janeiro frente às pressões de uma sociedade patriarcal e racista, sobretudo a capacidade de transformação de sua cultura em um produto essencial para a economia da cidade.

No começo do século XX a campanha contra a população pobre predominantemente negra, levou para o alto dos morros e os subúrbios distantes, uma parte considerável desse segmento, por serem locais onde o controle social das autoridades policiais era menor.

Com a destruição dos quiosques, cortiços e casas de cômodos, as autoridades acreditavam que iriam resolver o problema da vadiagem, ou seja, da falta de interesse em trabalhar da população negra, que na perspectiva do Estado, em sua maioria ocupava seu tempo em festas regadas a bebidas e comidas, atividades consideradas bárbaras para uma cidade que se propunha civilizada.

Depois de quatro séculos de escravidão a cidade estava impregnada de cultura africana nos seus costumes cotidianos.

A mudança do centro para os morros e os subúrbios cariocas não era algo viável para grande parte da população. Só aqueles que tinham condições de arcar com os custos do deslocamento para o trabalho no centro da cidade ou que conseguiam alguma ocupação próxima a nova residência obtinham sucesso nessa empreitada. As dificuldades que encontravam nesses novos locais não permitiam que as famílias cumprissem as exigências do poder público e, muitas famílias se acomodavam dividindo a mesma casa e consequentemente as despesas.

A sobrevivência também dependia da modificação do papel da mulher na economia familiar. Ao contrário do desejado pelo Estado, as mulheres não deixaram suas ocupações tradicionais como lavadeiras, empregadas domésticas, costureiras, bordadeiras, cozinheiras atendendo as necessidades das patroas brancas que não abriam mão do serviço de suas antigas escravas domésticas. Através das relações que mantinham no trabalho, muitas delas conseguiam empregar seus companheiros já que o desemprego era bem menor para elas que não sofriam a concorrência dos imigrantes.

As agremiações carnavalescas surgiram das festas familiares que reuniam vizinhos, parentes e amigos expulsos do centro da cidade e que formavam novos moradores que celebravam, seja em rodas de samba e partido alto ou cumprindo funções religiosas em locais esquecidos pelo poder público.

A precariedade em que viviam criou uma nova família baseada no apoio mútuo e na solidariedade, identificada não mais pela consanguinidade e sim pelos laços afetivos que se formaram nos locais de moradia.

Esse isolamento geográfico, culminou na preservação das características culturais de resistência e superação, também impulsionou os moradores dessas áreas marginalizadas a criarem várias organizações como forma de resistência, dentre essas, as organizações carnavalescas, originárias em sua maioria dos subúrbios, para se apresentarem no próprio bairro, como na Festa da Penha ou, se tivessem alguma posse, na Praça Onze durante o carnaval.

A visibilidade que esses eventos ganharam nos outros estratos da sociedade passou a interferir na dinâmica das suas atividades e para defendê-las a solução encontrada foi a aparente aceitação das novas regras, enquanto internamente, preservavam e fortaleciam seus valores.

Isso só foi possível porque as mulheres e suas famílias, deram o suporte necessário, ampliando a solidariedade, organizando as atividades, e se responsabilizando por tudo o que era necessário aos eventos que promoviam.

Aos poucos, essas atividades chamaram a atenção do comércio local que identificaram nelas uma forma de aumentar seus lucros suprindo as necessidades dessas agremiações, seja pela venda de alimentos necessários às festividades ou em outros materiais como tecidos e aviamentos para a preparação das agremiações carnavalescas, além de aumentarem o prestígio na comunidade.

A medida que o carnaval ganha fama e se integra nas normas da sociedade, se reproduz características patriarcais, onde o papel da mulher não deve ser de liderança, para preservar suas agremiações, as mulheres passam a atuar e serem percebidas de uma forma alegórica como baianas, passistas e outras figuras não relacionadas às funções de planejamento e execução da festa.

Entretanto, as lutas por valorização e reconhecimento da tradição carnavalesca nunca acabaram e a capacidade de resistir e se adaptar em defesa de uma cultura é o que mantém as escolas de samba até hoje em atividade, superando todos os obstáculos impostos pela situação política, social e econômica. Enfrentando e superando barreiras a cada momento, tendo a estrutura familiar como suporte.

Em vários momentos, dependendo da situação política e econômica da sociedade, essa atividade sofreu reveses, paralisações, interferências políticas e perseguições que foram superadas graças à base sólida e familiar que as sustentaram.

A pandemia da COVID-19, que levou muitos dos principais baluartes dessa tradição, e que afetou em especial a população mais pobre e negra do país é apenas um dos muitos obstáculos enfrentados e que ainda iremos enfrentar e superar, como sempre foi feito, em defesa da paixão pelo samba.

Decione Penha de Araujo Silva

Professora de Sociologia da Rede Estadual de Ensino, graduada em Gestão em Eventos Carnavalescos pela UNESA e em Ciências Sociais pela UERJ, Especialista em História da África e dos Afrodescendentes pela PUC-RIO e Mestre em Antropologia pela UFF.